O nascimento do samba está cercado de mitos. Havia (e ainda há) o Estácio de Ismael dizendo que o samba era seu, como cantaria Monarco em “Passado de Glória”, música da velha-guarda da Portela que foi posteriormente gravada por Paulinho da Viola no seu disco A Dança da Solidão (1972). Há também quem defenda que o ritmo teria nascido nos terreiros de candomblé da Bahia e sido levado para o Rio de Janeiro pela diáspora baiana para a então capital federal no final do século XIX. As mulheres tiveram um papel fundamental neste processo: eram as tias baianas, na maioria das vezes, as responsáveis por organizar eventos tanto de cunho afro-religioso quanto festivo em suas casas nos morros cariocas, desempenhando a função de agitadoras da cultura negra na época.
Uma das tias mais famosas foi Hilária Batista de Almeida (fotos), mais conhecida como Tia Ciata. Baiana de Santo Amaro da Purificação, mesma cidade natal do clã Veloso, Tia Ciata migrou para o Rio de Janeiro em 1876, aos 22 anos. Tornou-se um símbolo de resistência negra por abrir as portas de sua casa, na Praça Onze, para reuniões de sambistas pioneiros quando a prática ainda era proibida por lei. A história é controversa, mas uma das versões é de que “Pelo Telefone”, o primeiro samba a ser gravado no Brasil, foi concebido de maneira coletiva no quintal de Ciata.
Apesar de fundamentais para a estruturação do samba, a participação das mulheres ficou por muito tempo restrita a funções como organização das rodas e a preparação da comida. O papel criativo, de composição de letras e melodias a execução de instrumentos, era exercido majoritariamente por homens. Em consequência, o discurso presente nas letras de clássicos do samba retratavam figuras femininas a partir da ótica masculina: ou elas eram musas hiper-sexualizadas, como em “Requebro da Mulata”, música de Ataulfo Alves que foi posteriormente regravada por Itamar Assumpção em 1996 (Esse gostoso requebrado da mulata/ Tira o sossego de qualquer um cidadão/ Esse jeitinho que ela tem é que me mata/ Não há quem possa resistir à tentação); ou eram veneradas, se submissas, como em “Ai! Que Saudade da Amélia”, outro clássico de Ataulfo Alves com letra de Mário Lago que foi regravada até por Roberto Carlos; ou eram tidas como seres maus e traiçoeiros quando traíam ou não correspondiam ao amor dos sambistas, como em “Piranha”, de Bezerra da Silva (Eu só sei que a mulher é igual a cobra/Tem veneno de peçonha/Deixa o rico na miséria/E o pobre sem vergonha).
Ivone Lara, Elton Medeiros, Paulinho da Viola e Elza Soares em programa de TV (1983) | imagem: acervo da família
Também em “Piranha”, Bezerra da Silva ainda sugere castigo para mulheres adúlteras: “Eu só sei que a mulher que engana o homem/ Merece ser presa na colônia/ Orelha cortada, cabeça raspada/ Carregando pedra pra tomar vergonha”. Letras que traziam situações de violência doméstica eram comuns, reflexo de uma sociedade ainda mais machista do que a atual na qual bater em mulher era uma prática normatizada e aceitável em qualquer classe socioeconômica. Em “Comprimido” (1973), Paulinho da Viola introduz a canção, cantando sobre a briga de um casal: “Deixou a marca dos dentes/ Dela no braço/ Pra depois mostrar pro delegado/ Se acaso ela for se queixar/ Da surra que levou/ Por causa de um ciúme incontrolado”. No decorrer da música, aparece o trecho “Seu delegado ouviu e dispensou/ Ninguém pode julgar coisas de amor”, que reflete como a agressão às mulheres era um assunto de foro íntimo que dizia respeito apenas ao casal.
Dona Ivone Lara e Clementina de Jesus | Imagem: acervo da família
Foi só com o passar dos anos, aos poucos, que as mulheres conseguiram espaço como compositoras e passaram a cantar sambas a partir do viés feminino. Quem abriu alas foi Dona Ivone Lara, a grande Dama do Samba. Foi a primeira mulher a integrar a Ala dos Compositores da Império Serrano, em 1965, até então restrita a homens. Suas obras foram gravadas por artistas como Maria Bethânia — inclusive, o sucesso “Sonho Meu”, com participação lado de Gal Costa em 1978 –, Caetano Veloso, Paulinho da Viola, Vanessa da Mata, entres outros. O espetáculo musical Dona Ivone Lara – Um Sorriso Negro, em cartaz no Teatro Sérgio Cardoso (SP) até 20 de outubro, explora as várias nuances da biografia da compositora carioca. Depois e por causa de Ivone, vieram nomes como Jovelina Pérola Negra, Carmelita Brasil e Leci Brandão.
Gisa Nogueira, Dona Ivone Lara e Leci Brandão: compositoras de samba no Projeto Pixinguinha de 1980
Dona Ivone Lara com Maria Bethânia e Gal Costa | Imagem: acervo da família
Apesar de terem sido por muito tempo excluídas ou escanteadas do processo de composição dos sambas, o gênero consagrou intérpretes femininas icônicas da tradição cancioneira nacional, como Aracy de Almeida, Elizeth Cardoso, Clementina de Jesus, Beth Carvalho, Alaíde Costa, Clara Nunes, Dorina, Elza Soares e Elis Regina. Hoje em dia, a nova geração de vozes que defendem o lugar das mulheres no samba são Mariene de Castro, Fabiana Cozza, Teresa Cristina, Mart’nália, Maria Rita, Roberta Sá, entre tantas outras.
magem: acervo da família
Nos meses de setembro, outubro e novembro, vão passar pela Casa Natura Musical cinco shows protagonizados por mulheres no samba. Confira abaixo a nossa dica de programação de #SambaDasMinas (e ouça nossa playlist, clicando abaixo!):
Mariene de Castro em “Santo de Casa” – 20 e 21/09
Um dos grandes nomes da nova geração do samba, Mariene de Castro volta à Casa Natura Musical com o show Santo de Casa, baseado no seu primeiro álbum ao vivo, lançado em 2010. No repertório, músicas como “Samba de Terreiro”, “Cirandas” e “Falsa Baiana”.
“Cantar samba para mim é uma missão de vida. Fui escolhida para espalhar esse legado por todos os cantos e gerações. O samba está nessa ancestralidade que eu trago. Está nessa África que mora em mim. Está nos antepassados que me deram de herança. O samba não é uma escolha minha; é uma herança”, afirma a cantora.
Data: 20 e 21/09 (sexta e sábado)
Horário: 22h
Abertura da Casa: 20h30
Roberta Sá | “Giro” – 27/09
Entre xotes, sambas-de-roda e sambas-canção, Roberta Sá traz para a Casa Natura Musical o show de seu novo trabalho, Giro (2019), disco composto por onze canções inéditas de Gilberto Gil e parceiros — entre eles a própria Roberta, co-autora das canções “Cantando as horas”(Gil e Roberta), “Xote da Modernidade”(Gil/Bem Gil/Roberta Sá), “Outra coisa”(Gil/Roberta Sá/Yuri Queiroga) e “Fogo de Palha”(Gil/Bem Gil/Roberta Sá). Quem assinou a produção de Giro foi Bem Gil, filho de Gilberto, que também ficou responsável por arregimentar o time de músicos.
Data: 27/09 (sexta)
Horário: 22h
Abertura da Casa: 20h30
Avenida Samba Canção com Ná Ozzetti – 06/10
Formado por Igor Eça, Paula Santo e Mingo Araújo, o trio Avenida Samba Canção convida a cantora Ná Ozzetti para o show A Beleza e Poesia de Sambas-Enredo, no qual serão reinterpretados sambas-enredos clássicos da história do carnaval brasileiro. “As músicas são cantadas e tocadas mais lentamente e com arranjos que destacam as palavras, jogando o foco na poesia. O samba enredo narra uma história, muitas vezes com letras primorosas que, com o ritmo das baterias e a plasticidade das alegorias, acabam não sendo as únicas estrelas do desfile. Essa é a essência do Avenida Samba Canção, através de outra roupagem, mostrar a beleza, a poesia e a importância desses sambas”, explica Igor Eça, idealizador, diretor musical e arranjador do espetáculo.
Data: 06/10 (domingo)
Horário: 19h
Abertura da Casa: 17h30